segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Passagens e passaportes

Já perceberam como olhos tristes são indagantes? Dá vontade de decifrar. E de fato foi o que eu quis fazer quando conheci ela, a guria dos olhos mais tristes que eu já tinha visto. Eu a vi pela primeira vez em uma viagem para o exterior. A única coisa que me deu ânimo para continuar vendo ela foi o estranho fato de que embora seus olhos parecessem impenetráveis, seu sorriso me mostrava tudo que ela queria dizer.
Consegui uma desculpa esfarrapada no trabalho para fazer a tal viagem o mais seguido possível, então mensalmente iniciava-se um ritual. Da janela do ônibus eu contava todas as luzes da estrada, como se as que ficassem para trás fossem afogadas junto com tudo o que estava em sua volta. Enquanto o sol da manhã queimava meus olhos que ainda não tinham despertado, eu via pessoas ao meu lado desejando ter coisas das quais eu alegremente abriria mão apenas para sentí-la mais uma vez.
Chegando lá os raios de sol já não me queimavam mais os olhos, ao invés disso pareciam me lembrar de um amor que nunca morrerá. A poluição, o desmatamento, a violência, a fome e os preços altos sumiam, e o que ficava era uma sensação de paz, como um monge budista. Na verdade era tudo uma conspiração a favor de nós, e eu tinha certeza que nunca ia mudar. Enquanto passávamos os dias e as noites juntos eu contava a ela sobre as complicações com passagens e passaportes, e ela ria como se fosse a piada mais engraçada do mundo, me fazendo rir mais ainda.
Mas chegava o dia em que eu precisava voltar. Eu começava novamente o mesmo ritual, com a esperança de chegar a um acordo comigo mesmo sobre o que fazer com as luzes da estrada. "Deixo que se afoguem ou espero a próxima vez?". Eu sempre esperei a próxima vez, embora muitas vezes quis ter mudado de idéia por causa de todas as complicações e dificuldades envolvidas na viagem.
Mas quer saber? Eu faria tudo de novo apenas para sentí-la mais uma vez.

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